domingo, 13 de junho de 2010

Conversa de morango



"Olha aí, os primeiros morangos! Bonita cor, bonita palavra, mas em junho? Em julho é que eles deviam aparecer oficialmente, anda tudo mudado, enfim desta vez mudou para melhor, não houve adiamento para outubro ou novembro por motivos de ordem técnica, esses motivos que a gente não fica sabendo quais sejam, mas os morangos nunca mais foram colhidos diretamente no bosque, ou, se você prefere, na campina verdejante, por dedos jovens que logo os levavam à boca, a propósito: seus lábios eram assim tão vermelhos, ou você os pintava com morango espremido? Hoje eles (os morangos, claro que não me refiro aos lábios) vêm em cestinhas de taquara ou de lâminas finas de madeira, dizem até que já brotam assim da rama acondicionados em cestinhas maiores ou menores, conforme a intenção do vendedor e as posses do consumidor, são apartamentos de morangos, né? Uns maiores, outros menores, como acontece com a gente, ai morangos! O ácido sabor cortado pela branca moleza do creme Chantilly, e essa agora, quando que morango brasileiro de hábitos silvestres podia imaginar que seria misturado a essa francesice, elducorado a sucre vanillé e todas as milongolias conotativas que o nome desperta: forêt, chateau, porcelaine, dentelles... deixa pra lá, no fundo ele gosta, é a sofisticação invadindo a natureza, morgando de inverno virou primo-rico de morango de todo o ano, sente-se e prove a sobremesa, deixe um pouco de creme, um pouquinho só, nevar a quase imperceptível penugem do seu buço, criança gosta de se lambuzar de botas e de short, caminhou para trás no tempo, aliás, pouco, não estamos no Nino's, que importância tem isso? O morango maior, esse aí, tenha paciência, vou furtá-lo de sua taça, ele me, pertence de direito imemorial, não não vamos dividi-lo, que negócio é esse? Sou capaz de brigar por causa de um supermorango, você ainda não me conhece bem, deixe eu ser glutão, egoísta e bárbaro, mas se você faz mesmo questão de um sacrifício de minha parte, e tendo em vista as altas razões que movem o coração dos dominadores, bem, eu, el-rei, vos envio muito saudar e deposito pessoalmente em sua boca o maior dos morangos do meu reino, ainda ontem ele estava exposto na vitrine de uma casa de frutas da Rua da Carioca, foi fotografado e televisionado, creio até que foi entrevistado mas falou monossílabos, não é de muito falar, morango vale por si, independente de suas idéias, uns o acharam cafona, mania dessa gente chamar de cafona tudo que foge á bitola estreita, reapre que apesar de toda essa onda ele é dos mais discretos e honrados entre os morangos da presente safra, da qual não se pode ainda afirmar que seja esplendorosa ou medíocre, repare ainda que nem é propriamente um morango gigante, cabe fácil na colher, o que há é que ele me pareceu destinado a mim por um signo invisível gravado em sua epiderme rubra, quem sabe o que os morangos levam de código, há frutas sem mensagem, vazias, podiam não existir que ninguém lhes sentiria a falta, mas o morango tem uma personalidade! Talvez eu exagre, não é tanto assim, mas há momentos na vida do homem em que é imperativo conferir propriedades novas às coisas, propriedades que podem suplantar as que lhes são imanentes, se eu não tiver o poder de exaltar ao máximo os morangos, que me resta de positivo entre estes muros e circunstâncias, me diga por favor, ah, prefere não falar, eu sei, prefere degustar um a um a porção de morangos que o garçom lhe adjudicou, por sinal que ele botou mais na sua taça do que na minha, eu faria o mesmo, gentileza não é privilégio de garçons, gentileza maior eu faria na mata municipal, não a mata virgem de jaguar e suçuarana, mas num matinho particular onde, caminhando juntos, topássemos com um silencioso pé de amora, prefiro dizer framboesa, e só uma framboesa estaria madura, para você eu a destinara desde que nasci, estava ali me, nos esperando, mágica, mística, morada como em espanhol se fala, e eu a colheria e ela se abriria, em concha, e dentro dela estaria ofertada a você a razão primeira das coisas, o inefável sentido das coisas diversas, pode levar, isto é seu, o mundo lhe pertence a partir deste momento... viu o que se pode tirar da notícia de morangos em junho, viu?"

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