sábado, 26 de junho de 2010
quarta-feira, 16 de junho de 2010
Do Coelho
"...um coelho branco é tirado de dentro de uma cartola. E porque se trata de um coelho muito grande, este truque leva bilhões de anos para acontecer.
Todas as crianças nascem bem na ponta dos finos pêlos do coelho. Por isso, elas conseguem se encantar com a impossibilidade do número de mágica a que assistem.
Mas, conforme vão envelhecendo, se arrastam cada vez mais para o interior da pelagem, por onde ficam. Lá embaixo é tão confortável que elas não ousam mais subir até a ponta dos finos pêlos, lá em cima.
Só os filósofos têm ousadia para se lançar nesta jornada rumo aos limites da linguagem e da existência.
Alguns deles não chegam sequer a concluí-la, mas outros se agarram com força aos pêlos e berram para as pessoas que estão lá embaixo, no conforto da pelagem do coelho, enchendo a barriga de comida e bebida:
— Senhoras e senhores — gritam eles —, estamos flutuando no espaço!
Mas nenhuma das pessoas lá de baixo se interessa pela gritaria dos filósofos.
— Deus do céu! Que caras mais barulhentos! — elas dizem.
E continuam a conversar: será que você poderia me passar a manteiga? Qual a cotação das ações hoje? Qual o preço do tomate? Você ouviu dizer que a Lady Di está grávida de novo?"
Todas as crianças nascem bem na ponta dos finos pêlos do coelho. Por isso, elas conseguem se encantar com a impossibilidade do número de mágica a que assistem.
Mas, conforme vão envelhecendo, se arrastam cada vez mais para o interior da pelagem, por onde ficam. Lá embaixo é tão confortável que elas não ousam mais subir até a ponta dos finos pêlos, lá em cima.
Só os filósofos têm ousadia para se lançar nesta jornada rumo aos limites da linguagem e da existência.
Alguns deles não chegam sequer a concluí-la, mas outros se agarram com força aos pêlos e berram para as pessoas que estão lá embaixo, no conforto da pelagem do coelho, enchendo a barriga de comida e bebida:
— Senhoras e senhores — gritam eles —, estamos flutuando no espaço!
Mas nenhuma das pessoas lá de baixo se interessa pela gritaria dos filósofos.
— Deus do céu! Que caras mais barulhentos! — elas dizem.
E continuam a conversar: será que você poderia me passar a manteiga? Qual a cotação das ações hoje? Qual o preço do tomate? Você ouviu dizer que a Lady Di está grávida de novo?"
domingo, 13 de junho de 2010
Conversa de morango
"Olha aí, os primeiros morangos! Bonita cor, bonita palavra, mas em junho? Em julho é que eles deviam aparecer oficialmente, anda tudo mudado, enfim desta vez mudou para melhor, não houve adiamento para outubro ou novembro por motivos de ordem técnica, esses motivos que a gente não fica sabendo quais sejam, mas os morangos nunca mais foram colhidos diretamente no bosque, ou, se você prefere, na campina verdejante, por dedos jovens que logo os levavam à boca, a propósito: seus lábios eram assim tão vermelhos, ou você os pintava com morango espremido? Hoje eles (os morangos, claro que não me refiro aos lábios) vêm em cestinhas de taquara ou de lâminas finas de madeira, dizem até que já brotam assim da rama acondicionados em cestinhas maiores ou menores, conforme a intenção do vendedor e as posses do consumidor, são apartamentos de morangos, né? Uns maiores, outros menores, como acontece com a gente, ai morangos! O ácido sabor cortado pela branca moleza do creme Chantilly, e essa agora, quando que morango brasileiro de hábitos silvestres podia imaginar que seria misturado a essa francesice, elducorado a sucre vanillé e todas as milongolias conotativas que o nome desperta: forêt, chateau, porcelaine, dentelles... deixa pra lá, no fundo ele gosta, é a sofisticação invadindo a natureza, morgando de inverno virou primo-rico de morango de todo o ano, sente-se e prove a sobremesa, deixe um pouco de creme, um pouquinho só, nevar a quase imperceptível penugem do seu buço, criança gosta de se lambuzar de botas e de short, caminhou para trás no tempo, aliás, pouco, não estamos no Nino's, que importância tem isso? O morango maior, esse aí, tenha paciência, vou furtá-lo de sua taça, ele me, pertence de direito imemorial, não não vamos dividi-lo, que negócio é esse? Sou capaz de brigar por causa de um supermorango, você ainda não me conhece bem, deixe eu ser glutão, egoísta e bárbaro, mas se você faz mesmo questão de um sacrifício de minha parte, e tendo em vista as altas razões que movem o coração dos dominadores, bem, eu, el-rei, vos envio muito saudar e deposito pessoalmente em sua boca o maior dos morangos do meu reino, ainda ontem ele estava exposto na vitrine de uma casa de frutas da Rua da Carioca, foi fotografado e televisionado, creio até que foi entrevistado mas falou monossílabos, não é de muito falar, morango vale por si, independente de suas idéias, uns o acharam cafona, mania dessa gente chamar de cafona tudo que foge á bitola estreita, reapre que apesar de toda essa onda ele é dos mais discretos e honrados entre os morangos da presente safra, da qual não se pode ainda afirmar que seja esplendorosa ou medíocre, repare ainda que nem é propriamente um morango gigante, cabe fácil na colher, o que há é que ele me pareceu destinado a mim por um signo invisível gravado em sua epiderme rubra, quem sabe o que os morangos levam de código, há frutas sem mensagem, vazias, podiam não existir que ninguém lhes sentiria a falta, mas o morango tem uma personalidade! Talvez eu exagre, não é tanto assim, mas há momentos na vida do homem em que é imperativo conferir propriedades novas às coisas, propriedades que podem suplantar as que lhes são imanentes, se eu não tiver o poder de exaltar ao máximo os morangos, que me resta de positivo entre estes muros e circunstâncias, me diga por favor, ah, prefere não falar, eu sei, prefere degustar um a um a porção de morangos que o garçom lhe adjudicou, por sinal que ele botou mais na sua taça do que na minha, eu faria o mesmo, gentileza não é privilégio de garçons, gentileza maior eu faria na mata municipal, não a mata virgem de jaguar e suçuarana, mas num matinho particular onde, caminhando juntos, topássemos com um silencioso pé de amora, prefiro dizer framboesa, e só uma framboesa estaria madura, para você eu a destinara desde que nasci, estava ali me, nos esperando, mágica, mística, morada como em espanhol se fala, e eu a colheria e ela se abriria, em concha, e dentro dela estaria ofertada a você a razão primeira das coisas, o inefável sentido das coisas diversas, pode levar, isto é seu, o mundo lhe pertence a partir deste momento... viu o que se pode tirar da notícia de morangos em junho, viu?"
sábado, 12 de junho de 2010
Onde está o neo-amor?
(Arnaldo Jabor)
"Eu já fiz filmes de amor. Talvez por isso, e também pela música de Rita Lee com texto que escrevi, pessoas que encontro na rua me agarram e perguntam: "Mas... afinal, o que é o amor?" E esperam, de olho muito aberto, uma resposta "profunda". Eu penso, penso e digo: "Sei lá..."
Não sei, ninguém sabe, mas há no ar um lamento profundo pelo fim do sonho platônico de harmonia, de felicidade, de happy end. Sinto dizer, mas não há mais espaço para o happy end, nem no amor, nem na política, em nada.
Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era um desejo romântico. Depois, nos anos 80/90 foi ficando um amor de consumo, um amor de mercado. O ritmo do tempo acelerou o amor, o dinheiro contabilizou o amor, matando seu mistério impalpável.
O amor, e tudo mais, está perdendo a transcendência. Não existe mais o amante definhando de solidão, nem Romeus nem Julietas, nem pactos de morte, não existe mais o amor nos levando para uma galáxia remota, nem a sagrada simbiose que nos traria a eternidade feliz.
O amor não tem mais porto, não tem onde ancorar, não tem mais a família nuclear para se abrigar. O amor ficou pelas ruas, em busca de objeto, esfarrapado, sem rumo. Não temos mais músicas românticas, nem o lento perder-se dentro de "olhos de ressaca", nem o formicida com guaraná. Mas, mesmo assim, continuamos ansiando por uma paixão impossível. Existe o amor, claro. O que chamamos de "amor" vive dentro de nós como uma fome "celular". Está entranhado no DNA, no fundo da matéria. É uma pulsão inevitável, é uma reprodução ampliada da cópula entre o espermatozóide e óvulo, se interpenetrando. Somos grandes células que querem se reunir, separadas pelo sexo que as dividiu. O resto é literatura. Se bem que grandes poetas como John Donne sabiam que não viramos "anjos" com o amor; sabiam que o amor é uma demanda da terra, para atingirmos a calma felicidade dos animais.
Mas, onde anda, hoje em dia, esta pulsão chamada "amor"? Bem... vamos lá:
Uma das marcas do século 21 é o fim da crença na plenitude, na inteireza, seja no sexo, no amor e na política. Não adianta nos lamentarmos, pois estamos diante de um mundo afetivo e sexual muito novo, que muda veloz como a tecnologia.
Se isso é um bem ou um mal, não sei. Mas é inevitável.
Temos de parar de sofrer romanticamente porque o "acabou o amor" (ou mesmo o paraíso social...) ou, ao menos o antigo amor.
O pensamento afetivo, amoroso, ou filosófico continua lamentando uma unidade perdida. Continuamos - amantes ou filósofos - a sonhar com uma volta ao passado harmônico. Temos uma nostalgia lírica por alguma coisa que pode voltar atrás. Não volta. Nada volta atrás. Há que perder as esperanças antigas e talvez celebrar um sonho mais trágico, efêmero. Em tudo.
Não adianta lamentar a impossibilidade do amor. Temos de celebrar o neo-amor. Cada vez mais só o parcial, o fortuito é gozoso. Só o parcial nos excita. Temos de parar de sofrer por uma plenitude que não chega nunca.
Hoje, há que assumir a incompletude talvez como única possibilidade humana. E achar isso bom. E gozar com isso.
Em todas as revistas, fotos, filmes, a "imagerie" do erotismo contemporâneo "esquarteja" o corpo humano. Vejam as artes gráficas, fotos de revistas de arte, como Photo, (ou em Tarantino) onde tudo é (reparem) decepado, dividido, pés, sapatos escarpins negros, unhas pintadas, bocas vermelhas, paus, seios, corpos imitando coisas, tudo solto como num abstrato painel. Tudo evoca a impossibilidade saudosa de um "objeto total", da pessoa inteira.
À primeira vista parece uma louvação da perversão, do feitichismo, do erotismo das "partes", do "amor em pedaços". No entanto, estamos além do feitichismo, além da perversão - conceitos do século 19.
Não há mais "todo"; só partes. O verdadeiro amor total fica cada vez mais impossível, como as narrativas romanescas.
Hoje em dia, não há mais noção do que seria a felicidade, como antigamente. O que é ser feliz? Onde está a felicidade no amor e sexo? No casamento?
Sem a promessa de amor eterno, tudo vira uma aventura. Em vez da felicidade, o gozo rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do amor, só as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, hotéis, motéis, perdas, retornos, desertos, luzes brilhantes ou mortiças, a chuva, o sol, o nada.
O amor hoje é um cultivo da "intensidade" contra a "eternidade". É o fim do happy end. É bom que acabe esta mentira do idealismo romântico americano, para legitimar a família e a produção, pois na verdade, tudo acaba mal na vida. Não se chega a lugar nenhum porque não há onde chegar.
O amor, para ser eterno, tem de ficar eternamente irrealizado. A droga não pode parar de fazer efeito e, para isso, a "prise" não pode passar. Aí, a dor vem como prazer, a saudade como excitação, a parte como o todo, o instante como eterno. E, atenção, não falo de masoquismo; falo de um espírito do tempo. É bom sofrer numa metafísica passional, é bom a saudade, a perda, tudo, menos a insuportável felicidade.
Tudo bem, buscarmos paz e sossego, tudo bem nos contentarmos com o calmo amor, com um "agapê", uma doce amizade dolorida e nostálgica do tesao, tudo bem... Mas, a chama emocionante só vem com a droga pesada do século 21: a paixão. E isso é bom. Temos de acabar com a idéia de felicidade fácil. Enquanto sonharmos com a plenitude seremos infelizes. A felicidade não é sair do mundo, como privilegiados seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a trágica substância de tudo, com o não-sentido, das galáxias até o orgasmo. Temos de ser felizes sem esperanças.
E tem mais: este artigo não é pessimista."
Não sei, ninguém sabe, mas há no ar um lamento profundo pelo fim do sonho platônico de harmonia, de felicidade, de happy end. Sinto dizer, mas não há mais espaço para o happy end, nem no amor, nem na política, em nada.
Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era um desejo romântico. Depois, nos anos 80/90 foi ficando um amor de consumo, um amor de mercado. O ritmo do tempo acelerou o amor, o dinheiro contabilizou o amor, matando seu mistério impalpável.
O amor, e tudo mais, está perdendo a transcendência. Não existe mais o amante definhando de solidão, nem Romeus nem Julietas, nem pactos de morte, não existe mais o amor nos levando para uma galáxia remota, nem a sagrada simbiose que nos traria a eternidade feliz.
O amor não tem mais porto, não tem onde ancorar, não tem mais a família nuclear para se abrigar. O amor ficou pelas ruas, em busca de objeto, esfarrapado, sem rumo. Não temos mais músicas românticas, nem o lento perder-se dentro de "olhos de ressaca", nem o formicida com guaraná. Mas, mesmo assim, continuamos ansiando por uma paixão impossível. Existe o amor, claro. O que chamamos de "amor" vive dentro de nós como uma fome "celular". Está entranhado no DNA, no fundo da matéria. É uma pulsão inevitável, é uma reprodução ampliada da cópula entre o espermatozóide e óvulo, se interpenetrando. Somos grandes células que querem se reunir, separadas pelo sexo que as dividiu. O resto é literatura. Se bem que grandes poetas como John Donne sabiam que não viramos "anjos" com o amor; sabiam que o amor é uma demanda da terra, para atingirmos a calma felicidade dos animais.
Mas, onde anda, hoje em dia, esta pulsão chamada "amor"? Bem... vamos lá:
Uma das marcas do século 21 é o fim da crença na plenitude, na inteireza, seja no sexo, no amor e na política. Não adianta nos lamentarmos, pois estamos diante de um mundo afetivo e sexual muito novo, que muda veloz como a tecnologia.
Se isso é um bem ou um mal, não sei. Mas é inevitável.
Temos de parar de sofrer romanticamente porque o "acabou o amor" (ou mesmo o paraíso social...) ou, ao menos o antigo amor.
O pensamento afetivo, amoroso, ou filosófico continua lamentando uma unidade perdida. Continuamos - amantes ou filósofos - a sonhar com uma volta ao passado harmônico. Temos uma nostalgia lírica por alguma coisa que pode voltar atrás. Não volta. Nada volta atrás. Há que perder as esperanças antigas e talvez celebrar um sonho mais trágico, efêmero. Em tudo.
Não adianta lamentar a impossibilidade do amor. Temos de celebrar o neo-amor. Cada vez mais só o parcial, o fortuito é gozoso. Só o parcial nos excita. Temos de parar de sofrer por uma plenitude que não chega nunca.
Hoje, há que assumir a incompletude talvez como única possibilidade humana. E achar isso bom. E gozar com isso.
Em todas as revistas, fotos, filmes, a "imagerie" do erotismo contemporâneo "esquarteja" o corpo humano. Vejam as artes gráficas, fotos de revistas de arte, como Photo, (ou em Tarantino) onde tudo é (reparem) decepado, dividido, pés, sapatos escarpins negros, unhas pintadas, bocas vermelhas, paus, seios, corpos imitando coisas, tudo solto como num abstrato painel. Tudo evoca a impossibilidade saudosa de um "objeto total", da pessoa inteira.
À primeira vista parece uma louvação da perversão, do feitichismo, do erotismo das "partes", do "amor em pedaços". No entanto, estamos além do feitichismo, além da perversão - conceitos do século 19.
Não há mais "todo"; só partes. O verdadeiro amor total fica cada vez mais impossível, como as narrativas romanescas.
Hoje em dia, não há mais noção do que seria a felicidade, como antigamente. O que é ser feliz? Onde está a felicidade no amor e sexo? No casamento?
Sem a promessa de amor eterno, tudo vira uma aventura. Em vez da felicidade, o gozo rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do amor, só as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, hotéis, motéis, perdas, retornos, desertos, luzes brilhantes ou mortiças, a chuva, o sol, o nada.
O amor hoje é um cultivo da "intensidade" contra a "eternidade". É o fim do happy end. É bom que acabe esta mentira do idealismo romântico americano, para legitimar a família e a produção, pois na verdade, tudo acaba mal na vida. Não se chega a lugar nenhum porque não há onde chegar.
O amor, para ser eterno, tem de ficar eternamente irrealizado. A droga não pode parar de fazer efeito e, para isso, a "prise" não pode passar. Aí, a dor vem como prazer, a saudade como excitação, a parte como o todo, o instante como eterno. E, atenção, não falo de masoquismo; falo de um espírito do tempo. É bom sofrer numa metafísica passional, é bom a saudade, a perda, tudo, menos a insuportável felicidade.
Tudo bem, buscarmos paz e sossego, tudo bem nos contentarmos com o calmo amor, com um "agapê", uma doce amizade dolorida e nostálgica do tesao, tudo bem... Mas, a chama emocionante só vem com a droga pesada do século 21: a paixão. E isso é bom. Temos de acabar com a idéia de felicidade fácil. Enquanto sonharmos com a plenitude seremos infelizes. A felicidade não é sair do mundo, como privilegiados seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a trágica substância de tudo, com o não-sentido, das galáxias até o orgasmo. Temos de ser felizes sem esperanças.
E tem mais: este artigo não é pessimista."
sexta-feira, 11 de junho de 2010
Do mundo virtual ao espiritual
Nada como dar uma bela arrumada no quarto, e achar aqueles papéis antigos que você guardava, com textos e cartas.
Segue um achado:
"Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: "Qual dos dois modelos produz felicidade?"
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: "Não foi à aula?" Ela respondeu: "Não, tenho aula à tarde". Comemorei: "Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde". "Não", retrucou ela, "tenho tanta coisa de manhã..." "Que tanta coisa?", perguntei. "Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina", e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: "Que pena, a Daniela não disse "tenho aula de meditação"!
Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso, as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um super-executivo se não consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: "Como estava o defunto"? "Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite"! Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega Aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra!
Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais.
A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções - é um problema: a cada semana que passa temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é ‘entretenimento’; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: "Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!" O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede, desenvolve de tal maneira o desejo que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.
Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los aonde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque para fora ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald’s…
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: "Estou apenas fazendo um passeio socrático." Diante de seus olhares espantados, explico: "Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz""
quarta-feira, 9 de junho de 2010
sábado, 5 de junho de 2010
Olhe para sua vida
"O discípulo foi visitar o mestre Tan-in. Como nevava, levou consigo o guarda-chuva.
Como manda a tradição, ao entrar na casa do mestre zen, o discípulo deixou do lado de fora os sapatos e o guarda-chuva.
- Vi pela janela que você chegava – comentou o mestre. - Você deixou os sapatos à direita ou à esquerda do guarda-chuva?
- Não tenho a menor idéia. Mas que importância tem isso? Eu estava pensando no segredo do Zen!
- Se você não prestar atenção na vida, jamais aprenderá coisa alguma. Comunique-se com a vida, dê a cada segundo a atenção que merece; este é o único segredo do Zen."
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